Por que a Cracolândia sempre vence os políticos

29 Mai, 2017 16:11:19 - Brasil

São Paulo (SP)

A Cracolândia, área no centro de São Pauloque reúne centenas de usuários de crack, é há décadas um vespeiro político. Fortalecido pelos altos índices de popularidade, o prefeito João Doria (PSDB) achou por bem se arriscar. Em ação coordenada com o governo do estado, no domingo 21, a polícia usou a força para expulsar quem estava pelas ruas, e prendeu 48 suspeitos de envolvimento com o tráfico de drogas. Desde então, Doria, uma estrela em ascensão na política nacional, vive os dias de maior tensão de seu governo.

O ex-governador Alberto Goldman, também do PSDB, analisa a ação como um “desastre completo” e diz que ela ainda causou descompassos políticos desnecessários entre Doria e o governador do Estado, Geraldo Alckmin. “A ação policial era até necessária, uma vez que a região se tornou um reduto de criminosos, mas o governador acreditava que ela deveria ser seguida de ações sociais e de saúde, enquanto o prefeito saiu afirmando que a Cracolândia tinha acabado e ainda mandou escavadeira para derrubar prédios”, afirma Goldman.

Goldman se refere a um vídeo gravado ainda na segunda-feira e divulgado no Facebook de Doria. Nele, o prefeito, pisando sobre os destroços deixados pela operação, afirma: “a Cracolândia acabou”. Se a solução fosse tão simples, evidentemente que algum antecessor de Doria já a teria executado. E não faltaram projetos para a região de todas as gestões municipais desde a década de 90, quando a Cracolândia ganhou os contornos atuais. A região virou um foco de prostituição e de consumo e tráfico de drogas ainda nos anos 60. O problema foi piorando pouco a pouco, e entrou na agenda de todas as gestões municipais. EXAME Hoje ouviu especialistas em urbanismo e saúde pública e executivos da atual gestão e também dos governos Fernando Haddad e Gilberto Kassab para entender os maiores desafios de se criar políticas afetivas para a Cracolândia.

Há muitas dúvidas e poucas certezas. Uma delas é que Doria, como foi ficando claro ao longo dos dias, ficou longe de acertar o alvo. A ação truculenta espalhou os usuários de drogas pelo bairro, que agora buscam novos pontos para comprar crack. Os atropelos continuaram ao longo da semana. Na terça-feira, o prefeito mandou demolir prédios que estavam sendo utilizados para o consumo e tráfico de crack. Só esqueceu de verificar  se havia pessoas dentro. Três  pessoas ficaram feridas — e a prefeitura admitiu que não havia percebido a presença delas no local.

A repercussão da demolição levou a secretária de Direitos Humanos, Patrícia Bezerra, a pedir afastamento do cargo na quinta-feira, alegando que dificuldades “para dar prosseguimento à agenda de direitos humanos e ao atendimento humanizado à população mais vulnerável de São Paulo”. Em abril, Doria já havia demitido a secretária de Desenvolvimento e Assistência Social, Soninha Francine, via vídeo no Facebook, alegando que a pasta precisaria de um braço mais forte e mais celeridade.

Na quarta-feira depois da ação de desmonte da Cracolândia, o governador Geraldo Alckmin e o prefeito João Doria decidiram fazer um ato na região da Luz para anunciar a ampliação da PPP da Habitação, que prevê a construção de 14.000 unidades habitacionais no centro expandido de São Paulo, inclusive onde funcionava a antiga rodoviária da Luz, e vai incluir mais duas quadras em seu projeto, na localidade onde estavam os usuários de crack.

A informação foi repassada pelo secretário de habitação da prefeitura, Fernando Chucre, que conversou com EXAME Hoje. O ato de lançamento do projeto precisou ser suspenso, e a coletiva de imprensa, transferida para a sede da prefeitura, devido a intensos protestos no local. Aos gritos de “fascista” e “higienista”, manifestantes criticaram as ações na Cracolândia, afirmando que o poder público está expulsando moradores da região para construir um novo projeto no local.

O secretário, claro, afirma que não é esse o plano. “Logo após a intervenção policial, equipes da secretaria de habitação começaram, na segunda-feira, a fazer um mapeamento dos imóveis e o cadastramento das famílias”, afirmou Fernando Chucre. Segundo ele, há cerca de 70 edifícios na região, e aproximadamente 700 imóveis de uso comercial ou residencial. “Não vai haver remoção”, afirmou, dizendo que os moradores por enquanto ficam no local. Quando ficar pronto, o projeto da PPP, terá unidades destinadas para  habitação social, de modo a contemplar as famílias de baixa renda, e de mercado popular, que serão destinadas às famílias com renda de até 10 salários mínimos.

O trato com os usuários de crack é um problema ainda mais delicado. Além de tê-los expulsado do local com uso da força da polícia, a intenção da prefeitura é interná-los. Na mesma quarta-feira em que o projeto foi anunciado, o prefeito João Doria decidiu pedir autorização à Justiça para internar usuários compulsoriamente, ou seja, contra sua vontade. Atualmente, a internação compulsória só pode acontecer se cada caso for analisado individualmente, com respaldo de laudo médio e autorização judicial, conforme consta na lei federal nº 10.216, de 2001.

No texto, a prefeitura solicitou “a concessão da tutela de urgência para a busca e apreensão das pessoas em situação de drogadição”, que seriam avaliadas por uma equipe multidisciplinar antes de serem conduzidas à internação. A prefeitura alega que a medida é necessária porque os usuários estão sendo cooptados por novos pontos de tráfico nas ruas próximas, e que as estratégias de convencimento não serão suficientes para defender os interesses individuais e coletivos. A prefeitura não destacou um porta-voz para entrevista sobre esse assunto.

Na sexta, o juiz Emílio Migliano Neto autorizou, em decisão liminar, o pedido feito pela gestão João Doria para internar dependentes químicos à força. O Ministério Público de São Paulo condenou o pedido, em parecer divulgado na quinta-feira à noite, ao entender que é “uma ordem genérica e abstrata de internações compulsórias em massa” e que não há fundamento legal que autorize a ação. Além disso, o MP exige que sejam propostas políticas públicas consistentes para a região, que têm sido recorrentemente alvo de projetos que só agravam o problema.

No domingo 28, o desembargador Reinaldo Miluzzi, do Tribunal de Justiça de São Paulo, atendeu ao pedido do Ministério Público e barrou a liminar de primeira instância que autorizava a remoção à força de usuários para a realização de avaliação médica. A prefeitura afirma que irá recorrer da decisão, e o caso ainda será julgado por um colegiado de desembargadores do TJ.

A associação de políticas de redução de danos em saúde, É de Lei, também critica a atuação do poder público no local. “O histórico é longo. Houve pelo menos oito grandes operações policiais na região, que tiveram esse mesmo efeito de deslocar a Cracolândia. Ela já se instalou em vários lugares diferentes ao longo do tempo”, afirma Leôncio Nascimento, articulador de redes do É de Lei.

De um erro para outro

Uma das mais violentas ações na Cracolândia foi a Operação Sufoco, durante a gestão do então prefeito Gilberto Kassab em 2012, similar à intervenção do último domingo. A primeira etapa da estratégia policial era desarticular a logística do tráfico e, depois, intervenções baseadas nas técnicas conhecidas por “dor e sofrimento”, em que se pressupõe que deve ser considerado intolerável o consumo público de droga.

O articulador do É de Lei explica o porquê de essas experiências não darem resultado. “O consumo de drogas não é uma questão de caráter, é uma questão de dependência química, e o usuário vai buscar satisfazer isso independentemente do local onde a cracolândia esteja”, diz Nascimento. “O usuário não tem casa, não tem emprego, não tem estrutura familiar”.

Para a organização, é fundamental trabalhar antes de tudo a assistência aos usuários, e que a recomendação internacional é de prover “housing first”. A partir do momento em que o usuário tem acesso a cama, comida e oportunidades de remuneração, as chances de começar a reestabelecer os vínculos familiares e não precisar mais da droga, na teoria, aumentam.

É o que se propunha o programa Braços Abertos, implementado durante a gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT). De acordo com Djamila Ribeiro, secretária-adjunta de Direitos Humanos na gestão petista, a proposta foi a de oferecer hospedagem na região, onde as pessoas tinham oportunidade de lavar as próprias roupas e descansar, e a abstinência não era necessária. “Obrigar a abstinência é prever que o acesso ao programa será feito por meritocracia, só entra quem conseguir largar a droga. E o dever do poder público é justamente o de ajudar essas pessoas a saírem dessa situação”, explica.

O programa, que contava com cerca de 500 beneficiários, teve resultados positivos. Um levantamento da organização Open Society realizado em 2016 mostrou que 67% dos usuários reduziram o consumo de drogas e que 95% acreditaram que o programa teve impacto positivo em suas vidas. Dos atendidos, 51% já tinham passado por algum tratamento, sendo que 32% tinham ficado internados em clínicas de reabilitação.

Mas a Cracolândia continuou exatamente como estava. Os beneficiários continuavam convivendo com outros usuários de drogas, numa região que seguiu marcada pelo tráfico e por frequentes intervenções policiais. “A gente fez o que era possível dentro da competência municipal. É um problema complexo, que depende da integração com outros poderes e ações em outras frentes. Reconhecemos as limitações do programa, mas ele sem dúvidas foi um passo importante”, afirma Djamila Ribeiro.

Revitalizar a região tem sido um dos pontos principais da atual gestão do governo do estado. A ideia da PPP da Habitação integra um projeto urbanístico maior, o Nova Luz, que está sendo resgatado, de acordo com o secretário Fernando Chucre. O projeto foi desenhado durante a gestão de Gilberto Kassab (hoje no PSD), e tinha como objetivo fazer uma concessão urbanística de 45 quadras, em que o setor privado poderia atuar na região por um prazo de 15 anos seguindo as diretrizes determinadas pela prefeitura e mantendo quem tinha comércio ou moradia na região.

A urbanista Elisabete França, que era superintendente de habitação da secretaria de Habitação da prefeitura, afirma que a ideia era ampliar o número de habitantes e a atividade na área, e que a questão das drogas não é impeditiva para o andamento dos projetos. “Essa questão urbanística sempre foi discutida de forma integrada com ações sociais e de saúde, e as duas eram necessárias”, diz França. O projeto, porém, foi alvo do Ministério Público, que alegava que a população não tinha tido participação nas discussões. Como sempre acontece, a Cracolândia prevaleceu.

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REDAÇÃO JINEWS
Postado por REDAÇÃO JINEWS

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