A ofensa, a injustiça e o perdão

24 Out, 2018 07:44:57 - Artigo

Caminhando apressado, em uma sexta-feira, pelo centro de Florianópolis, vi um homem aos prantos sentado em um banco junto ao Mercado Público. Cinquentão, casualmente vestido, com uma barba embranquecida, mas o corpo ainda exibindo traços de um passado atlético, um certo ar intelectual, pensei: “Um professor talvez?” Não me contive, me aproximei e perguntei: “Eu posso ajudá-lo? O senhor está se sentindo bem?” Ele disse: “Assalamu alaikum, que a paz e as bênçãos do Altíssimo estejam com você meu jovem, não sou daqui, sou um nômade, um estrangeiro nesta terra, ou em qualquer outra, sou filho da estrada, como meus patrícios no passado, Leão, o Africano e Ibn Battuta.” 

Vim aqui rezar, oração coletiva islâmica (salat al-jumah) de sexta-feira, na mesquita no centro desta cidade e pedir perdão ao Al-Hadi (“O Guia”, um dos 99 nomes de Deus no Alcorão), para mim e para os meus algozes, de nossos pecados, fraquezas e limitações. Vim também pedir proteção divina para família que perdi.” “Como assim”, perguntei. "O que houve meu bom homem?” Imaginando quem seria aquele estranho em desespero que professava uma religião exótica e emanava tanta dor. "Sou de Duma, na Síria, perto da capital Damasco. Era professor universitário até nossa cidade ser destruída pela guerra civil que, há anos, consome nosso país. No caos, que tomou conta de nossas vidas, minha esposa e filha foram para um campo de refugiados na Jordânia. Eu fiquei porque meus laços de solidariedade e minha honra me obrigavam a lutar ao lado dos meus companheiros contra aqueles que, naquele momento, pareciam ser nossos inimigos. 

Anos de destruição, morte e dor depois, exauridos pela carnificina, negociamos um acordo com as forças do governo e fomos enviados para Turquia. De lá, devido à situação política, nos ofereceram asilo no Brasil e cá estou eu, do outro lado do mundo, sozinho e amargurado sem minha família amada. O mais irônico, meu jovem amigo brasileiro, é que sou sírio de origem palestina, da 1ª geração de refugiados palestinos nascidos na Síria, que acolheu meus pais, após nossa pátria original, a Palestina, ter sido invadida por conquistadores vindos dos confins da Europa com o apoio do Ocidente. Agora, mais uma vez, como consequência da guerra civil que assola a Síria desde 2011, como meus pais, em 1948, sou obrigado a deixar minha terra em virtude de uma guerra que foi, em grande parte, iniciada pelos interesses do Ocidente. Este mesmo Ocidente que ajudou a destruir a Palestina de meus ancestrais.

 Choro dia e noite no cubículo que passei a viver, nesta terra estranha, impregnado de preces, súplicas e pela presença invisível da minha família roubada pela guerra. Inshallah (Se Deus quiser), meu jovem, a justiça divina (Adil) triunfe e eu possa reencontrar minha esposa e filha amadas. Nesta hora, eu posso visualizar, uma mão que aparecerá no vazio de minha vida para me reerguer. “A `mão` de Deus, Al Muhaymin (“O Protetor”, um dos 99 nomes de Deus no Alcorão) invisível porque perfeita e forjada na infinita misericórdia. Pegará a minha, enrugada de tanto limpar lágrimas e apenas um apêndice físico de um corpo que perdeu sua alma.” E recitou um verso melodioso de beleza sem par, que, não obstante ser em árabe, me comoveu profundamente: “Laa yukalliful-laahu nafsan illaa wus'ahaa.” Em seguida explicou: "esse é um versículo de nosso livro sagrado, o Alcorão, cuja tradução seria: “Deus não impõe a nenhuma alma uma carga superior às suas forças. E concluiu: “Allahu A'alam” (Deus sabe mais).

Despedi-me, desejei-lhe boa sorte e ele retribuiu repetindo o cumprimento inicial: “Assalamu alaikum” (Que a paz e as bênçãos do Altíssimo estejam com você), meu amigo brasileiro. Afastei-me pensativo, naquele fim de tarde movimentado de sexta-feira no centro de Florianópolis e pensei comigo sobre a injustiça desse mundo e da nossa indiferença perante o sofrimento de outros seres humanos.

Afinal, aquele estranho era mais uma vítima de um mundo no qual o Mal prevalece sobre o Bem. Duas gerações de refugiados de guerras criadas em nome de religiões, que dizem promover justiça para alguns à custa do sofrimento de outros e para alimentar a fome insaciável de um sistema criado pelos homens cada vez mais civilizado e mais cruel. Assim caminha a humanidade, de tragédia em tragédia, diante de nossa indiferença.

Doutor Jose Tufy Cairus 
جوزيف توفيق كيروز  
Professor Supervisor de História
Centro Universitário Leonardo da Vinci-UNIASSELVI

REDAÇÃO JINEWS
Postado por REDAÇÃO JINEWS

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